quinta-feira, julho 27, 2006

 
SAUDADES






Há três longos anos que não vejo a minha Mãe.

Não por qualquer aborrecimento ou afastamento geográfico. Mas porque há três anos que faleceu. Partiu deixando um enorme vazio pintado de várias cores.

Tenho saudades dela. Muitas.
Continuo um pouco incrédula com o facto de sempre ter existido na minha vida - e eu na dela – e, de um momento para o outro, numa fracção de segundo, o que era deixou de ser, o que existia deixou de existir. Ficou tão somente um corpo sem vida e sem alma, sem ela!

Curiosamente as saudades doem mais cada dia que passa.
Sei que o tempo ajuda nas perdas. Mas este nosso tempo não está a fazer efeito, qual aspirina nas fortes dores de cabeça - talvez este tempo esteja fora de prazo pela forte relação que tínhamos.

Que é feito das nossas conversas, Mãe?
Das incessantes sessões de risos que nos faziam dores no estômago por não pararem mais?!
E dos rios onde juntas navegávamos em frágeis barcaças fortes e plenas de sentimentos?

Ficámos com viagens agendadas, apesar de termos passado a vida a fazer férias juntas.
Um cruzeiro era um dos teus sonhos...Que passou a ser nosso. Só nós as duas, dizias, e os livros, as conversas e o sossego de não olharmos para o senhor do tempo: combinámos tantas vezes que retiraríamos os relógios ao embarcar!

Quantas vezes partilhámos alegrias e desgostos, enquanto dividíamos doses em restaurantes de praia... Houve alturas de fartura, de desafogo e outras em que as doses e a dose de amor era muito repartida. Mas sempre chegou para, com ou sem concordâncias, chegarmos a bom porto e ajudar na condução dos destinos. Mesmo na dissidência, mesmo na derrota, mesmo na amargura e na desilusão que a vida, por vezes, trazia.

“Até que a morte nos separe” foi, de facto, o nosso lema sem precisarmos de casamento.

“Com a morte acaba tudo, não nos iludamos”- há quem diga.
Mas não, não pode ser. Por muito que entenda que este acreditar se prende com a minha necessidade e não com o que realmente existe ou não.

Com a morte de alguém a quem muito amamos e a quem estamos tão ligados sentimos a distância, não a morte ... esta terrível impossibilidade de estarmos perto, de privarmos, de vivermos com essa pessoa.
Morrer deve ser estar inevitavelmente afastado de quem amamos.
Mesmo que seja para estarmos mais perto de todos.


Olha, queres ver como ainda me lembro bem de quando era miúda e me escondia na prateleira do quarto dos brinquedos? Vinhas buscar-me pela mão para conversarmos.
Lembro-me do teu reconfortante colo quando, apavorada, cheguei a casa com a novidade sobre o nascimento dos bébés: a Maria do Carmo - colega repetente armando-se em sabichona ao pé das mais novas - tinha contado que os bébés nascem pelas costas das mulheres! Que o médico abria um buraco nas costas e metia a mão bem fundo até chegar à barriga para puxar os gaiatos cá para fora!
“ Mãe, que horror”- balbuciei a chorar- “não quero ter filhos nunca!”.

Seguiu-se uma aula de anatomia dada à laia de conto fantástico. Só nós as duas deitadas na cama, cumplicidade ao máximo! Tinhas tomado duche e o lençol branco enrolava o teu corpo de mãe.
Foste-o desenrolando e explicaste-me onde cresciam e por onde nasciam os filhos das mulheres.

Meu Deus, lembro-me de tanta coisa mais! Afinal estás tão comigo cá dentro! E o teu cheiro? Cheiravas a mãe! Esse nunca mais conseguirei cheirá-lo. Mas ficou gravado na minha memória. Se alguma vez passares por mim reconhecer-te-ei.

Também me ensinaste que rezar é falar com Deus.
Aprendi que escrever é uma das formas de falar contigo. Sempre foi!
Quando partiste tivémos de desmanchar a casa, como quem apaga a luz para fechar a porta. Mas não me esqueço, entre tantas outras coisas, que deixaste no fundo das gavetas tudo o que te escrevi ao longo dos anos. Mesmo quando era bem minúscula, apesar de grande no teu coração. Escrevinhanços bem guardados como ficou a minha promessa de não deixar de escrever.

quinta-feira, julho 20, 2006

 
ESTA ARTE TÃO DIFÍCIL QUE É EDUCAR





Quantas vezes, no passado, ouvi de sábias bocas amigas “Espera até eles serem adolescentes! Aí é que vais ver o que é complicação!”, como resposta aos lamentos das noites mal dormidas por causa da febre e das dores de ouvidos dos meus filhos. Estas exclamações, dadas à laia de resposta, revelaram-se com tamanho sentido no meu dia-a-dia desde há uns anos para cá, que tenho que os lembrar. “ Dores de barriga? Corridas para as urgências do Hosp. de D. Estefânia? Isso são doces! Isso é normal e é a parte mais fácil! Espera mais uns anitos! Aí é que vais ver o que é difícil! Vais sonhar com as dores de ouvidos e desejar as dores de barriga!”. Claro que sorria mas, sinceramente, naquela altura não me pareciam sábios comentários. Por inexperiência minha e falta de capacidade de observação, sei-o hoje! De facto o que são as noites mal dormidas pelas centenas de vezes que lhes vamos acalmar o choro ou para lhes dar um antipirético comparadas com as que não dormimos de todo pensando como compreendê-los? Dando voltas à cabeça, ao instinto e à sensibilidade para concluirmos como os vamos ajudar, como irão eles conseguir sair desta “fase” tão estranha que é a adolescência nos dias que correm. De facto não é comparável. É amor de igual medida, é preocupação com a mesma cor, é o ser pai ou mãe de coração inteiro, mas é muito mais aflitivo por incapacidade de projectarmos o futuro próximo. Ou de o projectarmos com um final menos apetecível. Quando eram pequeninos, e com as "camuecas" normais e costumeiras dos miúdos sabíamos, de antemão, e quase com cem por cento de certeza que a doença passaria em 48horas ou, no caso das célebres viroses levariam 3, 5, 7 ou 15 dias a passar!?! Não que não nos preocupássemos com essas coisas, e a maior parte das vezes excessivamente estando conscientes que tudo poderia complicar-se, mas não sabíamos de todo o que ainda estava para vir! O que não são e o que não custam as noites do romper dos dentes e dos febrões das anginas comparando-as às noites não dormidas e ao cansaço do desânimo de convivermos com um desenvolvimento, dito adolescente, de forma caótica e nunca conforme o que tínhamos projectado e imaginado?! Para aumentar o nosso desespero está uma atitude de retraimento na comunicação deles para connosco e para com o mundo, respondendo à nossa insistência com um “Não é nada. Estou bem, só preciso de espaço. São coisas minhas. Não, não quero falar!”.
Desesperante, não?
Mas, por outro lado muito educativo para nós, pois aprendemos que como pais conscientes e alertados que somos, temos de conseguir ter a percepção que não é, de facto, o fim do mundo e mesmo que o seja já nada podemos fazer de real como quando os levávamos numa correria às urgências do hospital. Ao longo do tempo, desde que somos pais, começamos a sentirmo-nos aptos a diagnosticar os males do corpo dos nosso filhos... as estranhas viroses, anginas, intoxicações e excessos alimentares. Até mesmo as alergias.
Mas estar apto a reconhecer, e consequentemente ajudar, um adolescente, mesmo nosso filho com quem lidamos desde que nasceu, relativamente aos males ligados ao espírito - depressões, altos e baixos aparentemente inexplicáveis e dificilmente compreensíveis pelos adultos- não é tarefa fácil e, muitas vezes impossível de realizar de uma assentada só!
O que fazer para que entendam que os amamos e só queremos ajudar?
Se antes bastava o nosso colo, a nossa mão e o nosso conforto para acalmar o seu choro? Se antes o transmitir-lhes confiança e o nosso amor era tão mais simples e intuitivo? Pelo que tenho constatado com os “meus” adolescentes- os que através de mim nascerem e os que a mim estão ligados pela preocupação e pelo afecto - muitas vezes sentem-se confusos ao ponto de saberem que sofrem porque sentem esse sofrimento, que necessitam de ajuda, mas sem entenderem muito bem sobre o quê, para quê e porquê! Daí aquela atitude típica de se fecharem pensando que se nem eles entendem o sofrimento muito menos os “cotas” que estão tão longe deles irão entender!
Às depressões sucedem-se as ansiedades, os medos e o recolhimento, o isolamento no quarto ou no grupo de amigos. Querem e pedem-nos mais “liberdade” pensando saber usá-la, mas ainda sem terem sequer noção exacta do que é, de facto, a liberdade nesta vida e o que ela acarreta de responsabilidade. Mesmo quando os educamos com o lema “educar com responsabilidade para a liberdade” e segundo outros slogans que tais, nunca funciona como aparenta, salvo algumas honrosas excepções que sempre existem - a maior parte das vezes no meio de três irmãos educados de forma idêntica - para nos confundirem ainda mais nesta nossa missão feita arte. Cada pessoa é única e desta maneira aprendemos a também olhar os adolescentes: cada jovem é um ser único e deve ser olhado como tal, acredito.
Nas tentativas para os ajudar, além da sensibilidade, do amor, compreensão e firmeza, quanto esforço fazemos para lhes dar a entender que só eles poderão construir as suas vidas futuras e mudar o que os preocupa. Alterar os seus mundos e os fantasmas que lhes tiram o sono e lhes ensombram os olhos antigamente alegres, na medida em que quando se compreenderem a eles poderão tomar as atitudes e as posturas mais adequadas à sua própria felicidade. “Mãe, é preciso todo este sofrimento só para crescer?”- lembro-me tão bem da carita da minha filha mais velha quando teve a sua primeira desilusão amorosa, na qual teimou sem me dar ouvidos. E agora pergunto eu: Tanto sofrimento para continuarmos nós também a crescer e a ajudar-vos a crescerem e a tentarem ser felizes? Não seria bem mais fácil se trouxessem manual de instruções!

dedicado a todos nós, pais de coração inteiro

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